Antígone

por | 04/05/2020 | Antiguidade Clássica | 4 Comentários

Autor(es): Sófocles

Lançamento: 497 a.C. (ou 496 a.C.)

A Mitologia Grega é uma narrativa de heróis. Ao homem grego homérico, não havia glória maior que a morte em combate, deixar a vida terrena para entrar no imaginário popular dos grandes combatentes.

Para as mulheres, a sociedade patriarcal grega implicava a elas uma vida muito mais restrita: não eram consideradas cidadãs, eram vetadas as suas presenças nos jogos olímpicos ou mesmo que participassem das Tragédias representadas durante as Dionisíacas (ver quadro). Também não participavam da vida militar, o que dificultava a sua penetração no rol de heróis da sociedade grega.

Dionisíacas


Celebrações que ocorriam na Grécia Antiga onde, dentre outras atividades, os escritores apresentavam ao público as suas Tragédias, para que os atenienses elegessem a melhor.

Não significa que não tenhamos tido grandes mulheres na história grega, como Penélope, que aguardou por 20 anos o retorno de Odisseu e que, para manter-se fiel ao marido, usa da astúcia – tão cara a seu esposo – para afastar os pretendentes que persistentemente exploram a sua morada; Ou Electra que maquina a vingança contra a sua própria mãe, após esta arquitetar o assassinato de Agamemnon – seu marido e pai de Electra – quando este retorna da Guerra de Troia.

Porém, o papel usual que encontramos nestas mulheres é sempre em um âmbito secundário: não que não existam Tragédias dedicadas inteiramente a mulheres, como fez Eurípides com Hécuba e As Troianas, por exemplo. O papel secundário vem do fato da ação destas mulheres sempre serem originárias externamente, em razão ou por causa de um homem. Penélope passa anos dedicando-se a tecer um sudário a espera de seu esposo, Ulisses, como forma de postergar a corte realizada pelos seus pretendentes – sua ação é uma prova suprema do seu amor por Ulisses; Clitemnestra assassinada Agamemnon (Tragédia de Ésquilo), pois, além de estar sob influência de seu amante, Egisto, guarda rancor pelo Rei ter sacrificado a sua filha, Ifigênia, em busca de mares tranquilos para a frota Grega poder se locomover para Troia. Em ambos os casos, seja por amor ou raiva ao marido, todo o papel feminino é relegado como uma reação à ação de um homem.

“Mulher, pareces homem de bom senso
Com tua fala sensata.”

foto da estátua de pé em preto e branco.

Sófocles. Foto: Reprodução

A citação acima, de Agamemnon, reflete bem o pensamento à época: um pensamento justo, útil, é um pensamento tipicamente masculino. Mulheres quando assim o agem, agem não por si próprias, mas como se homens fossem.

Mas isto não significa que em todas as obras Gregas as mulheres tenham ficado relegadas a papéis de menor destaque do que os masculinos. Temos a força de uma Hécuba (Eurípides), Rainha de Troia, que consegue, mesmo na adversidade da família assassinada e de sua cidade destruída, obter forças para realizar sua última vingança. Contudo, mesmo neste exemplo, as ações da rainha são uma reação à atuação de um homem.

Agora há uma mulher que age até as últimas consequências, não por um amor, não por vingança, mas por Justiça: Antígona.

Sófocles é o mais longevo da tríade (Ésquilo, Sófocles e Eurípides) de escritores da Tragédia Clássica Grega: vive até os 90 anos, tem reconhecidas mais de 120 tragédias e comédias escritas. Da sua obra, chegaram até nós: Ájax, Antígona, As Traquínias, Édipo Rei, Electra, Filoctetes e Édipo em Colono. Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona narram, nesta sequência, a tragédia envolvendo Édipo, seu exílio de Tebas e o retorno de sua filha a cidade natal.

Laio, em razão de um relacionamento homossexual, é punido com a profecia que, caso fosse um dia pai, seu filho retornaria para mata-lo. Após este incidente, casa-se com Jocasta e a engravida. Temeroso da punição divina, o casal entrega o bebê para que este fosse sacrificado. Apiedando-se do bebê, o responsável pelo infanticídio doa a criança para um Pastor, que acaba legando a criança para outro casal. Naquela que é a mais famosa narrativa das tragédias gregas, Édipo retorna a Tebas e, no percurso, mata o seu pai biológico. Após resolver o enigma da esfinge, recebe o governo da cidade de Tebas, bem como casa-se com a rainha-viúva, Jocasta, sua mãe.

Quadro escruro mostra a silhueta iluminada da mãe olhando para o filho estendido no chão

Antígona na frente do corpo de Polinices, óleo sobre tela de Nikiforos Lytras, 1865, Galeria Nacional de Arte de Atenas. Fonte: Wikimedia Commons

Após descobrir com quem se casou, na cena em que Aristóteles definiu como o ápice da Tragédia, Édipo cega-se, sua esposa-mãe suicida-se, e Édipo decide se exilar de Tebas. Durante sua ausência, seus filhos Etéocles e Polinices brigam pelo trono – história objeto da Tragédia Sete Contra Tebas, de Ésquilo – enquanto suas filhas Antígona e Ismene o acompanham no exílio.

Polinices procura o pai durante o exílio, e o pai profetiza que ambos se matariam pelo trono, uma vez que não o ampararam em momento algum quando decide se exilar da cidade. A profecia é cumprida, e Polinices e Etéocles efetivamente realizam o duplo-homicídio em combate.

Finalmente, inicia-se a tragédia Antígona, que decide regressar a Tebas quando o seu pai falece – sendo aqui notável o fato que Édipo não morre pelo sofrimento da carne, mas simplesmente é transferido desta vida terrena para o Hades. O novo Rei, Creonte, seu tio e irmão de Jocasta, decide dar honras fúnebres apenas a Etéocles, proibindo que o mesmo fosse feito por Polinices. Antígona decide realizar o enterro do seu irmão, mesmo sabendo que isto custará a sua própria vida. O que leva Antígona a manter-se fiel ao projeto de prestar honras a seu irmão?

“Creonte:
Tens o desplante de pisar em normas?

Antígona:
Quem foi o Arauto delas? Zeus? Foi Dike,
Circunvizinha das deidades ínferas?
Não ditam norma assim, nem penso haver
Em teu decreto força suficiente
Para negar preceitos divos, ágrafos
Perenes, que não são de agora nem de ontem,
Pois sempivivem.”

Antígona derramando uma libação sobre o cadáver de seu irmão Polinices. Escultor: Rinehart William Henry (1870). Acervo The Metropolitan Museum of Arts.

A ação de Antígona não é originária de éditos ou fatos presentes, mas, sobretudo da Lei, originária ou não de preceitos religiosos. Antígona, sabendo que sua decisão lhe causará sua própria vida, ainda assim decide prosseguir prestando honras a seu irmão. O que Antígona busca, é a justiça: há uma obrigação filial em realizar as honras fúnebres, não estando ela aqui investida de juiz para escolher qual dos irmãos estava certo; Antígona apenas cumpre o que era dela esperado: a execução do enterro de seu irmão, Polinices.

Diferentemente de todas as tragédias que antecederam ou que sucederam Antígona, é nesta personagem que vemos uma mulher agindo por si própria, baseada em preceitos éticos e morais, e não apenas como um ser complementar ao universo masculino. Ao agir em prol de valores, da justiça, e não por amor a um ou outro irmão, não por vingança contra este ou aquele, Antígona se distancia do universo grego clássico, tomando ela um corpo próprio dentro do universo trágico grego: Antígona é uma mulher emancipada em relação aos homens, ao ser ela mesma a norteadora de suas ações.

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Mario Miranda

Autor dos livros “Reflexões em um dia de velório” e “Noites Vazias”. Apaixonado pelas literaturas Grega Clássica, Francesa e Russa.
Assina a Coluna Antiguidades Clássicas do Recanto da Literatura.

4 Comentários

  1. Priscila Santos

    Gostei da sua visão da obra e sobre o contexto histórico. Um olhar mais profundo sobre Antígona.

    Responder
    • Mario Miranda

      Obrigado. Em toda a Tragédia Grega encontraremos algo para nos deleitarmos, não há exceção. Mas encontrar em uma personagem como Antígona, pensada há mais de 2.500 anos, discussões sobre Justiça, Leis e até – por que não – desobediência civil, é um marco na Literatura Clássica.

      Responder
  2. Mariana Gago

    Me impressiona sua perspectiva sobre questões clássicas tangentes a sociedade, leis, costumes…Alguém que realmente desfocou seu tempo e esforço a conhecer os vezos clássicos. Uma lição sobre Antígona.

    Responder
    • Mario Miranda

      Exato. Algumas obras da Tragédia Clássica, citaria aqui Antígona e Eumênides (caberia um Post aqui sobre Eumênides e a Gênese do Direito: que tal?), são de extrema relevância para trazermos as origens do pensamento Ocidental, retornando 2.600 anos.

      Ver uma pessoa sacrificando-se em prol da Justiça, do Certo – em última instância, do Direito – quando estas noções eram tão pouco difusas e estabelecidas na sociedade, já seria um fato relevante per si. Ver tudo isto sendo realizado por uma Mulher, em uma sociedade em que para esta restava a simplicidade do Amor/Inveja/Ciúme, torna a obra única em diversas culturas, não apenas na Ocidental.

      Responder

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